Observando o Plano Espiritual a celeuma de muitas cidades, em torno da incineração dos cadáveres, a ser estabelecida por lei, reparamos que o assunto não é realmente para rir.
De um lado, temos os legisladores preocupados com a terra dos cemitérios e, de outro, determinadas autoridades eclesiásticas lançando a censura sobre os responsáveis pelo movimento inovador. Entre os atores da peça, vemos os defuntos de amanhã, sorridentes e bem-humorados, apreciando a pugna entre a religião e a edilidade.
Aqueles, como nós, que já atravessaram a garganta da sombra, seguem a novidade com a apreensão das pessoas mais velhas, à frente dum parque de crianças.
O problema da cremação do corpo, realmente, deveria merecer mais demorado estudo nos gabinetes legislativos.
Há muito caminho por andar, antes que o homem comum se beneficie com a verdadeira morte.
A cessação dos movimentos do corpo nem sempre é o fim do expressivo transe.
O túmulo é uma passagem especial, a cujas portas muitos dormem, por tempo indeterminado, criando forças para atravessá-las com o precioso valor.
Morrer não é libertar-se facilmente.
Para quem varou a existência na Terra, entre abstinências e sacrifícios, a arte de dizer adeus é alguma coisa da felicidade ansiosamente saboreada pelo Espírito, mas para o comum dos mortais, afeitos aos "comes e bebes" de cada dia, para os senhores da posse física, para os campeões de conforto material e para os exemplares felizes do prazer humano, na mocidade ou na madureza, a cadaverização não é serviço de algumas horas. Demanda tempo, esforço, auxílio e boa vontade.
Por trás da máscara mortuária, muitas vezes, esconde-se a alma inquieta e dolorida, sob estranhas indagações, na vigília torturada ou no sono repleto de angústia.
Para semelhantes viajores da grande jornada, a cremação imediata do comboio fisiológico será pesadelo terrível e doloroso.
Eis, por que, se pudéssemos, pediríamos tempo para os mortos.
Se a Lei Divina fornece um prazo de nove meses para que a alma possa renascer no mundo com a dignidade necessária, e se a legislação humana já favorece os empregados com o benefício do aviso prévio, por que razão o morto deve ser reduzido à cinza com a carne ainda quente?
Sabemos que há cadáveres, dos quais, enquanto na Terra, estimaríamos a urgente separação, entretanto, que mal poderá trazer aos vivos o defunto inofensivo, sem qualquer personalidade nos cartórios?
Não seria justo conferir pelo menos três dias de preparação e refazimento ao peregrino das sombras para a desistência voluntária dos enigmas que o afligem na retaguarda?
Acreditamos que ainda existe bastante solo no Brasil e admitimos, por isso, que não necessitamos copiar apressadamente costumes em pleno desacordo com a nossa feição espiritual.
Meditando na pungente situação dos recém-desencarnados, observo quão longe vai o tempo em que os mortos eram embalados com a doce frase latina: "Requiescat in pace."
Não basta agora o enterro pacífico! É imprescindível a apressada desintegração dos despojos! E se a lei não for suavizada, com as setenta e duas horas de repouso e compaixão para os desencarnados, na laje fria de algum necrotério acolhedor, resta aos mortos a esperança de que os saltitantes conselheiros da cremação de hoje sejam amanhã, igualmente, torrados.
Irmão X & Chico Xavier
Do livro Escultores de Almas
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