Famoso artista assumiu o compromisso de pintar
um quadro a óleo para a catedral de uma cidade italiana. Teria por tema a
vida de Jesus. Durante meses dedicou-se ao gratificante trabalho.
Ao final, faltavam duas personagens: Jesus menino e Judas Iscariotes.
Meticuloso, pôs-se a procurar os modelos ideais.
Em bairro de periferia encontrou um garoto de sete anos, cujo rosto o
impressionou vivamente. Tinha expressão suave, fisionomia tranquila,
olhos brilhantes e expressivos, exatamente o que desejava.
Conversou com os pais. Conseguiu que o levassem
ao ateliê. O modelo infantil posou pacientemente, até que a figura do
sublime infante foi retratada, com toda a pureza e inocência
pretendidas.
O pintor suspirou, aliviado. Faltava apenas Judas.
***
O tempo passou, o quadro empacou; anos se
sucederam, sem que o modelo ideal fosse encontrado. O artista viu homens
que traziam estampada na face a vilania e a degradação. Mas nenhum
deles possuía uma fisionomia que configurasse Judas como o imaginava:
deprimente figura, um infeliz vencido pela ambição, atormentado pela vil
traição.
Os padres reclamavam. Ele próprio sentia-se
envelhecer e temia não terminar a pintura, em face das exigências de sua
própria arte. A obra inacabada acabou ficando num canto do ateliê, por
duas décadas. Mas o pintor não desistira. Obcecado pela procura,
examinava atentamente os homens com quem travava contato, sem que alguém
se aproximasse do modelo idealizado.
Certa feita bebericava um copo de vinho numa
taverna, quando um mendigo, esfarrapado e magro, apareceu à porta.
Cambaleante, caiu e rolou pelo chão. Voz rouquenha clamava:
– Vinho, vinho!
Compadecido, ao tentar erguê-lo, viu-lhe o
pintor o rosto bem de perto e estremeceu de emoção. Aquela fisionomia
atormentada, viciosa, suja, desesperada, era o retrato fiel de Judas!
Emocionado, propôs-lhe:
– Venha comigo! Eu o ajudarei!
O infeliz o acompanhou. Chegados ao ateliê,
depois de ter satisfeito a fome e a sede do improvisado modelo, o pintor
desvelou a tela, dispondo-se a iniciar o trabalho.
Entretanto, quando o mendigo a contemplou, deixou-se possuir por grande agitação, desandando em choro convulso.
O pintor ficou atônito.
– O que houve? Por que essa aflição?
Ele não conseguia falar, a chorar, atormentado.
– Fale meu filho! O que houve? Deixe-me ajudá-lo!
O infeliz controlou-se.
A gaguejar, fez surpreendente revelação.
– Não se lembra de mim? Há muitos anos estive aqui. Fui eu! Fui eu quem posou para o seu menino Jesus!
Este fascinante episódio dramatiza uma situação que se repete, indefinidamente, no Mundo:
A perda da inocência e da pureza, e o
comprometimento com vícios e paixões, marcando a transição da infância
para a idade adulta. É comum os pais de criminosos que cometeram
atrocidades comentarem, em desespero:
– Não posso acreditar que
tenha sido nosso filho! Era um menino tranquilo e gentil, incapaz de uma
maldade! Como pôde transformar-se num monstro?!
Observando o comportamento desajustado, as más
tendências que se manifestam no indivíduo, à medida que supera o estágio
infantil, tem-se a impressão de que a sociedade corrompe as pessoas.
Essa era a ideia de Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), filósofo do Iluminismo. Ele proclamava que o homem é bom ao
nascer, puro e sem mácula. Nasce com a face de Jesus. A sociedade lhe
imprime o rosto de Judas.
É evidente que, se assim fosse, estaríamos diante de um fatalismo inconcebível, uma incoerência de Deus.
Colocar-nos num mundo onde fôssemos inexoravelmente induzidos ao mal.
A ideia de Rousseau tem outro problema. Favorece
o errôneo conceito de que a alma é criada no momento da concepção.
Seria, portanto, pura e imaculada, como um livro de páginas em branco,
corrompida pela sociedade, que nela imprimiria todos os seus vícios e
maldades.
***
Sócrates (470-399 a.C.) que viveu há mais de dois mil anos antes de Rousseau, tinha um conceito mais avançado.
Admitindo a ideia da Reencarnação, considerava
que a criança não é um livro em branco. Guarda registros de vidas
anteriores. Educar seria não apenas fazer o Espírito entrar na posse de
seu patrimônio de experiências pretéritas, mas também ajudá-lo a superar
as tendências inferiores resultantes de seus desvios.
É exatamente esse o ponto de vista da Doutrina
Espírita, a nos ensinar que a candura da criança, sua inocência e
simplicidade, nada tem em comum com a natureza do Espírito que ali está.
Este, na verdade, permanece num estado de
dormência e só começará a despertar para a vida física após os sete
anos, acordando plenamente na adolescência, quando entrará na posse de
sua personalidade e tendências.
Sua aparência, sua graça, sua inocência, tem por
objetivo despertar em seus pais, naqueles que a cercam, sentimentos de
proteção e carinho, fundamentais para que sobreviva, já que nessa fase o
ser humano é totalmente dependente.
A partir da adolescência, o Espírito reencontra a
si mesmo, com suas qualidades e defeitos. A maldade, o vício, a
inconsequência, refletirão apenas aquilo que ele é, realmente, fruto de
suas experiências passadas.
Por isso é que a face de Jesus pode converter-se
na face de Judas. A pureza aparente pode ocultar o comprometimento com
paixões e vícios.
Há que se considerar, contudo, que a finalidade da existência na Terra é a renovação, a superação de tendências inferiores.
Encarnamos exatamente para evoluir. As
limitações impostas pelo corpo físico, que inibem nossas percepções, as
dificuldades e dores da Terra, atuam como lixas grossas que desbastam
nossas imperfeições.
Uma das revelações mais importantes da Doutrina Espírita está na questão número 383, de O Livro dos Espíritos,
quando Kardec pergunta qual a utilidade da infância, e o mentor informa
que nessa fase o Espírito é extremamente sensível às influências que
recebe.
Muitas de suas tendências inferiores e fragilidades poderão ser superadas com a ajuda dos responsáveis por ela.
Naturalmente, é fundamental que haja o exemplo,
que os pais estejam dispostos a viver o que ensinam aos seus rebentos,
cultivando um comportamento digno e honrado. De nada adiantará ensinarem
ao filho que fumar é nocivo ou que não deve dizer palavrões, se eles
próprios o fazem.
Artur Azevedo (1855-1908), escritor e teatrólogo brasileiro, narra ilustrativo diálogo entre pai e filho.
O pai, informado de que o menino mentia muito na
escola, dá-lhe uma lição de moral, explicando-lhe, com variados
exemplos, que é preciso dizer sempre a verdade. Nesse ínterim, batem à
porta. O pai termina a conversa recomendando:
– Vá atender, filho. Se for alguém que me procure, diga-lhe que não estou.
***
Óbvio que a possibilidade de corrigir tendências
inferiores não acaba jamais. Na dinâmica da reencarnação, somos
incessantemente estimulados à renovação, enfrentando as dificuldades e
problemas da Terra.
A diferença é que na infância isso pode ser feito a partir da influência de pais e preceptores.
Na idade adulta, dependerá de nossa iniciativa.
Qual seria o caminho? Jesus no-lo indica (Lucas, 18:15-17):
Trouxeram-lhe, então, algumas crianças para
que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, e os discípulos
repreenderam os que as trouxeram.
Jesus, porém, disse:
– Deixai as crianças e não as impeçais de
vir a mim. Porque delas é o Reino dos Céus. Em verdade vos digo: aquele
que não receber o Reino de Deus como uma criança, de modo algum entrará
nele.
O mestre situa as crianças como paradigmas da inocência e da pureza necessárias para que atinjamos o Reino de Deus.
Inocência – a pureza da consciência.
Pureza – a inocência do coração.
A face de Jesus menino tem se convertido, em
nós, nas experiências reencarnatórias, na face lamentável de Judas.
Somos convocados, agora, pelo conhecimento espírita, a transformar a
face de Judas na figura radiante do Cristo, empenhando-nos com tal ardor
e dedicação, que um dia possamos repetir com o Apóstolo Paulo (Gálatas, 2:20): ...e já não sou eu quem vive, mas o Cristo que vive em mim.
Fonte: Correio Espírita
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