Um dos discursos de Zaratustra, personagem criado pelo filósofo
Nietzsche, refere-se, de forma muito interessante, às transformações
experimentadas pelo ser humano, durante sua trajetória de vida.
Esse texto, inclusive, serviu de inspiração para Carl Gustav Jung ao
desenvolver seu conceito de individuação, entendido como o processo pelo
qual o ser humano busca desenvolver a consciência de si mesmo,
integrando seus aspectos sombrios, diferenciando-se do coletivo e
tornando-se, então, o ser que é.
Nietzsche sugere que o espírito humano comumente vivencia, ao longo
de sua vida, três diferentes etapas de transformação, nas quais
desenvolverá o autoconhecimento, além de se apropriar de sua força,
para, ao final, tornar-se quem realmente é. Como símbolos das três
metamorfoses, o filósofo utilizou:
- o camelo, para representar o ser que desenvolve o papel de carregar o peso do mundo, dispondo-se a servir, de forma submissa, por ainda não ter vontade própria e consciência para tomar decisões. Ao carregar o peso das cobranças, dos problemas alheios, aprende que sofre justamente por tentar carregar o que não deveria, o que não lhe pertence. Nessa fase, tem a oportunidade de desenvolver humildade, caso aproveite o aprendizado. Mas pode, igualmente, manter-se na acomodação e na subserviência, adotando postura escrava e de vítima, indefinidamente;
- o leão, para exemplificar o momento em que a consciência desperta, tornando-se crítica e permitindo ao indivíduo discernir e fazer escolhas por si mesmo. A pessoa assume, então, a responsabildiade pela própria existência, e experimenta uma nova forma de relação com o mundo, considerando, agora, suas próprias concepções e valores. Ao leão é dada a chance de experimentar o Sim, sim; Não, não do Evangelho1. Ao se posicionar de acordo com seus valores, deixa de carregar valores alheios, que não lhe fazem sentido. Torna-se corajoso e leal aos seus princípios, mas precisa cuidar para não exagerar nessa postura, desenvolvendo arrogância, orgulho e acreditando-se dono da verdade, superior e distante dos outros;
- a criança, para simbolizar o renascimento, o recomeço, como se a vida, de fato, iniciasse a partir desse ponto, ou seja, somente depois de haver desenvolvido a humildade de servir do camelo e a coragem de ser livre do leão, numa sociedade prisioneira de valores passageiros, é que o ser humano está pronto para viver realmente. É o momento em que podemos afirmar: Vivemos no mundo conscientes de que não somos do mundo.2
Interessante notar que o filósofo, crítico da religião, acabou
utilizando a criança como representação de verdadeira sabedoria, de
evolução, emprestando, de forma inconsciente, provavelmente, o símbolo
empregado por Jesus:
Quem é o maior no reino dos céus? – Jesus, chamando a si um
menino, o colocou no meio deles e respondeu: “Digo-vos, em verdade, que,
se não vos converterdes e tornardes quais crianças, não entrareis no
reino dos céus. – Aquele, portanto, que se humilhar e se tornar pequeno
como esta criança será o maior no reino dos céus3.
O Espiritismo explica que a finalidade da vida na Terra é o progresso
espiritual e, para isso, conforme vivemos, é natural que passemos
realmente por transformações, provenientes da reforma íntima que nos
cabe.
Nietzsche chama a atenção, na voz de Zaratustra, para algumas faces
que devemos desenvolver em nossas metamorfoses durante a vida: a de
sermos servidores, humildes suficientes para nos envolvermos com as
histórias dos outros, propondo-nos a ajudá-los a carregar seus fardos,
sem, no entanto, tornarmo-nos subservientes; a de sermos firmes e
corajosos, a ponto de não nos deixarmos levar pelos modismos ou valores
predominantes, mas capazes de seguir os próprios princípios, cuidando,
porém, de não cairmos na armadilha de nos sentirmos superiores,
tornando-nos arrogantes e, por fim, a de sermos alegres, espontâneos e
confiantes, como são as crianças, esperançosas do futuro, livres de
preconceitos e com energia para viver, aprender, crescer.
Mas observamos que Jesus novamente antecipou o filósofo, quando nos
recomendou que, ao viver entre lobos, que podem, atualmente, simbolizar
os valores distorcidos predominantes, nos conservássemos mansos como as pombas, mas prudentes como as serpentes4.
A recomendação do Mestre de Nazaré é a de buscarmos internalizar esses
dois aspectos que parecem paradoxais, sendo, no entanto, complementares:
a humildade e mansidão da pomba e a prudência e firmeza da serpente.
Ao observarmos as normas, culturas e comportamentos predominantes nas
sociedades modernas, verificamos o quanto esse ensinamento – de
preservarmos o aspecto pacífico, aliando-o à coragem – proposto por
Jesus e relembrado por Zaratustra, é atual e de grande relevância.
Observamos em nossa vida social, que poucas pessoas são capazes de
transitar por esses dois caminhos de forma saudável. A maioria tomba na
vitimização, deixando-se explorar ou na prepotência, colocando os outros
a serviço de si.
É preciso, então, plena atenção para a conquista desse caminho do meio,
da medida certa, entre a humildade/mansidão e a firmeza/prudência. Ao
nos propormos a essas transformações, que nos preparam para a vivência
pacífica, mas, ao mesmo tempo, resoluta, certamente nos encontraremos,
ao final, mais próximos da pureza de alma, simbolizada pela criança.
Referências:
1 BÍBLIA, N. T. Mateus. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Campinas: Os Gideões Internacionais no Brasil, 1988. cap. 5, vers. 37.
2 Op. cit. João. cap. 17, vers. 16.
3 Op. cit. Mateus. cap. 18, vers. 1-5.
4 Op. cit. Mateus. cap. 10, vers. 16.
Fonte: Jornal Mundo Espírita, por Cristiane Maria Lenzi Beira
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