Eternidade

Eternidade

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Destruição dos Seres Vivos uns pelos outros




A destruição recíproca dos seres vivos é uma das leis da Natureza que, à primeira vista, parece o menos se conciliar com a bondade de Deus. Pergunta-se por que lhes fez uma necessidade de se entre-destruírem para se nutrirem às expensas uns dos outros.

Para aquele que não vê senão a matéria, que limita sua visão à vida presente, isto parece, com efeito, uma imperfeição na obra divina; de onde esta conclusão que disso tiram os incrédulos, de que Deus não sendo perfeito, não há Deus. É que julgam a perfeição de Deus do seu ponto de vista; seu próprio julgamento é a medida de sua sabedoria, e pensam que Deus não poderia fazer melhor do que les mesmos o fariam. Sua curta visão não lhes permitindo julgar o conjunto, não compreendem que um bem real pode sair de um mal aparente. Somente o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua essência verdadeira, e da grande lei de unidade que constitui a harmonia da criação, podem dar ao homem a chave desse mistério, e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia precisamente aí onde não via senão uma anomalia e uma contradição. Ocorre com esta verdade, como em uma multidão de outras; o homem não estará apto a sondar certas profundezas senão quando seu Espírito tiver chegado a um grau suficiente de maturidade.

A verdadeira vida, tanto do animal quanto a do homem, não está mais no envoltório corpóreo que dela não é senão o vestuário; ela está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Este princípio tem necessidade do corpo para se desenvolver pelo trabalho que deve realizar sobre a matéria bruta; o corpo se desgasta nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta, ao contrário: sai dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais capaz. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos vezes de envoltório; com isto não é menos Espírito; é absolutamente como se um homem renovasse cem vezes seu vestuário no ano, com isso não seria menos o mesmo homem. Pelo espetáculo incessante da destruição, Deus ensina aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material, e suscita entre eles a ideia da vida espiritual em lhes fazendo desejá-la como uma compensação.

Deus, dir-se-á, poderia chegar ao mesmo resultado por outros meios, e sem constranger os seres vivos a se entre-destruírem? Bem audacioso aquele que pretendesse penetrar os desígnios de Deus! Se tudo é sabedoria em sua obra, devemos supor que essa sabedoria não deva mais fazer falta sobre esse ponto do que sobre os outros; se não o compreendemos, é preciso atribuí-lo ao nosso pouco adiantamento. No entanto, podemos tentar procurar-lhe a razão, tomando por bússola este princípio. Deus deve ser infinitamente justo e sábio ]procuremos, pois, em tudo sua justiça e sua sabedoria.

Uma primeira utilidade que se apresenta dessa destruição, utilidade puramente física, é verdade, é esta: os corpos orgânicos não se mantém senão com ajuda das matérias orgânicas, só essas matérias contendo os elementos nutritivos necessários à sua transformação. Os corpos, instrumentos de ação do princípio inteligente, tendo necessidade de serem incessantemente renovados, a Providência os faz servir à sua manutenção mútua; é por isso que os seres se nutrem uns dos outros; quer dizer que o corpo se nutre do corpo, mas o Espírito não é nem destruido, nem alterado; ele não é senão despojado de seu envoltório.

Além disso há considerações morais de uma ordem mais elevada.

A luta é necessária ao desenvolvimento do Espírito; é na luta que ele exerce suas faculdades. Aquele que ataca para ter seu alimento, e aquele que se defende para conservar sua vida, se rivalizam em astúcia e em inteligência, e aumentam, por isso mesmo, suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas o que é que o mais forte ou o mais hábil tirou ao mais fraco em realidade? Sua veste de carne, não outra coisa; o Espírito, que não está morto, retornará um outro corpo mais tarde.

Nos seres inferiores da criação, naqueles em que o senso moral não existe, em que a inteligência não está ainda senão no estado de instinto, a luta não poderia ter por móvel senão a satisfação de uma necessidade material; ora, uma das necessidades materiais mais imperiosas é a da nutrição; eles lutam, pois, unicamente para viver, quer dizer, para tomar ou defender uma presa, porque não poderiam estar estimulados por um móvel mais elevado. É neste primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida. Quando ela alcança o grau de maturidade necessária para sua transformação, recebe de Deus novas faculdades: o livre arbítrio e o senso moral, centelha divina em uma palavra, que dão um novo curso às suas ideias, dotam-na de novas aptidões e de novas percepções. Mas as novas faculdades morais das quais está dotada não se desenvolvem senão gradualmente, porque nada é brusco na Natureza; há um período de transição em que o homem se distingue com dificuldade do animal; nessas primeiras idades, o instinto animal domina, e a luta tem ainda por móvel a satisfação das necessidades materiais; mais tarde, o instinto animal e o sentimento moral se contrabalançam; o homem então luta, não mais para se nutrir, mas para satisfazer sua ambição, seu orgulho, a necessidade de dominar; por isto, lhe é necessário ainda destruir. Mas, à medida que o senso moral domina, a sensibilidade se desenvolve, a necessidade da destruição diminui; acaba mesmo por se apagar e por se tornar odiosa: o homem tem horror ao sangue. No entanto, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, porque mesmo chegado a este ponto, que nos parece culminante, está longe de ser perfeito; não é senão ao preço de sua atividade que ele adquire conhecimentos, experiência, e que se despoja dos últimos vestígios da animalidade; mas então a luta, de sangrenta e brutal que era, se torna puramente intelectual; o homem luta contra as dificuldades e não mais contra os seus semelhantes. [...]


Fonte: Revista Espírita  1865

sábado, 25 de maio de 2013

Em que degrau estamos?


Em que Degrau Estamos?

RICHARD SIMONETTI

 

Os Espíritos pertencem a diferentes ordens, conforme o grau de perfeição a que tenham alcançado:  Espíritos puros, que atingiram a perfeição máxima; 
bons  Espíritos, nos quais o desejo do bem é o que predomina;
Espíritos imperfeitos, caracterizados pela ignorância, pelo desejo do mal 
e pelas paixões inferiores.
(folheto institucional da Campanha 
ESPIRITISMO, UMA NOVA ERA PARA A HUMANIDADE, da FEB.)



       No livro Gênesis, na Bíblia, capítulo 28, há uma passagem famosa que envolve a figura de Jacó, um dos patriarcas do povo judeu.
       Certa feita, em viagem, chegando à noite num local desconhecido, deitou-se para descansar.
       Dormiu e sonhou que a partir dali se erguia uma escada que se estendia até o Céu, por onde anjos subia e desciam.
       Ao lado estava Jeová, o deus bíblico, que lhe concedeu e à sua descendência a terra onde repousava e renovou suas promessas de que ampararia o povo judeu, que haveria de se estender por toda a Terra como o pó do chão.
       A concessão não deu muito certo.
       Os judeus, na maior parte de sua história, permaneceram sob domínio estrangeiro e a partir do ano 70 da Era Cristã, quando o general romano Tito arrasou Jerusalém e os descendentes de Jacó espalharam-se pelo Mundo, não eram triunfadores - apenas egressos de uma nação que perdera seu território.
         
*

       Bastante sugestiva, nesta passagem, é a escada de Jacó, que se estende da Terra ao Céu.
        Simboliza a jornada do Espírito rumo à perfeição.
        Na medida em que desenvolvemos nossas potencialidades criadoreas e aprimoramos nossos sentimentos, superando as próprias limitações, galgamos degraus, aproximando-nos cada vez mais do Céu, a plena realização como filhos de Deus na geografia da consciência.
        Os anjos que sobem e descem a escada simbolizam os Espíritos superiores, que amparam e ajudam seus irmãos em evolução, já que a solidariedade é a sua característica mais expressiva.
        Por isso costuma-se dizer que a felicidade do Céu é socorrer a infelicidade da Terra.

 *

      Em "O Livro dos Espíritos", na questão 97, Kardec pergunta ao mentor espiritual se há um número determinado de ordens ou graus de perfeição dos Espíritos.
        O mentor responde que esse número é ilimitado.
        É a mesma ideia da escada que se estende ao infinito. Impossível contar os degraus, subimos rumo à perfeição. Mas, em linhas gerais, observando as características individuais, diz o mentor que poderiam reduzir-se a três ordens:
        Na Primeira Ordem, os Espíritos puros, que atingiram a perfeição máxima
        Observe leitor, que o mentor não fala em perfeição absoluta. Se a atingíssemos estaríamos nos igualando a Deus.
        Certa feita, adolescente ainda, ouvi dois confrades discutindo a respeito do assunto. Chegaram à conclusão de que o progresso é infinito e que o próprio Criador também evolui. Somente assim seria sempre superior às suas criaturas.
        Aquilo me parecia muito estranho e hoje entendo que os dois companheiros estavam equivocados.
        Deus está no absoluto - o Criador incriado.
        Nós estaremos sempre no relativo - suas criaturas.
        Como tais há um limite para nosso desenvolvimento, que o mentor chama de perfeição máxima.
        Poderíamos situá-la como o pleno desenvolvimento de nossas potencialidades criadoras e o pleno conhecimento e observância das leis divinas. Atingido esse estágio o Espírito será um proposto de Deus, Co-partícipe na obra da Criação, mas sempre o relativo diante do Absoluto.
        Na Segunda ordem, os Espíritos que chegaram ao meio da escala. Predomina neles o desejo do bem. Não obstante suas imperfeições, orientam-se pelo anseio de servir, de ajudar, de estudar, de resolver seus enigmas e contradições.
        Na Terceira ordem, os Espíritos que ainda se acham na parte inferior. A ignorância, o envolvimento com o mal, as paixões e os vícios, são suas características marcantes.

*
      Kardec traça oportunos comentários sobre o assunto, estabelecendo subdivisões para essas ordens, mostrando como podemos identificar a natureza de um Espírito por seu comportamento e suas palavras.
        Particularmente em "O Livro dos Médiuns", um manual sobre as manifestações mediúnicas, o Codificador enfatiza o cuidado que devemos ter no trato com os Espíritos, procurando identificar a que ordem pertencem, a fim de não incorrermos em perigosos enganos na apreciação do que dizem.
        Situa, por exemplo, uma classe de Espíritos que chama de pseudo-sábios. Estes podem discorrer com facilidade sobre muitos assuntos, demonstram erudição, mas apresentam conceitos equivocados que exprimem seus próprios preconceitos e ideias sistemáticas, distanciados da verdade.
        O grande problema no meio espírita é a lamentável tendência de se acolher Espíritos dessa natureza, travestidos em mentores, cujas opiniões são aceitas sem discussão.
        O pior é que as pessoas se habituam a consultá-los tornando-os à conta de infalíveis. Situam-se como cegos guiados por outros cegos, conforme a expressão evangélica.
        Há casos exemplares:
        Uma mulher abandonou marido e filhos porque o "mentor" lhe disse que um homem por quem se apaixonara era sua "alma gêmea" que viera programada para experiência em comum...
        Um diabético entrou em coma e quase morreu, porque o "guia" lhe recomendou que substituísse a insulina por determinado chá...
        Uma empresa foi à falência porque seus proprietários seguiam a orientação de um "mentor" que, certamente, não entendia nada de finanças...
        Um homem cortou relações com um vizinho, porque o "guia" lhe disse que, por inveja, o referido fizera um "despacho" para prejudicá-lo...
        Um grupo mediúnico uniu-se em torno do ideal de publicar livros psicografados por um de seus integrantes, todos mal alinhavados, linguagem pobre, ortografia precária, flagrantes erros doutrinários, porque o autor espiritual, ninguém menos que o próprio "guia", afirmava tratar-se de importante contribuição em favor da Doutrina Espírita.

*

      Todos que mourejamos na Terra somos, obviamente, Espíritos.
        Uma única diferença nos distingue - estamos encarnados.
        Assim, a escala espírita se aplica a nós também.
        Também estamos num determinado degrau da imensa escada evolutiva que nos conduzirá ao Céu.
        Haverá entre nós Espíritos da Primeira Ordem, puros, perfeitos?
        Houve um apenas:
        Jesus.

*

      Espíritos da Segunda ordem, que se orientam exclusivamente pelo desejo de fazer o bem, têm transitado em número razoável pelas paragens terrestres.
        São os grandes idealistas, que não obstante suas limitações, trabalham em favor do progresso humano. Ainda que em posições de subalternidade, destacam-se pelo seu comportamento, empenhados em cuidar do próximo, esquecendo-se de si mesmos.
        Muitos nem precisariam reencarnar na Terra. Deixam os patamares mais altos em que se encontram para estimular à ascensão os irmãos que se demoram em degraus mais baixos.

*

     Perto da base situamo-nos todos nós, pobres humanos ainda orientados pelo egoísmo.
       Sonhamos atos vôos de espiritualidade, mas temos os pés chumbados no chão.
       Admiramos a virtude, mas não conseguimos vencer o vício.
       Exaltamos a palavra mansa, mas frequentemente caímos na expressão agressiva.
       Como diz Paulo, queremos o bem, mas nos envolvemos com o mal.
       Nossa evolução primária evidencia-se no trato com as pessoas que se comprometem com o crime.
       Se lemos no jornal que rapazes incendiaram um mendigo ou alguém estuprou e matou uma criança, logo pensamos que a pena de morte seria pouco para essa gente, e que todos deveriam ser submetidos às piores torturas, numa clara alusão ao olho por olho, da anacrônica legislação mosaica que Jesus revogou há dois mil anos.
       Será que um Espírito da Segunda Ordem pensaria assim? Ou enxergaria, nesses criminosos, doentes necessitados de tratamento, como está no ensino evangélico?
       O nosso anseio de justiça cheira a vingança.
       Se alguém nos faz um desaforo, logo "soltamos os cachorros", para "colocar o imbecil em seu devido lugar". Os que, por um prodígio de disciplina, silenciam, não fazem melhor, consumindo-se em rancor.

*

       A escada de Jacó situa-se em nosso próprio coração. Para galgar seus degraus até o Céu da Consciência tranquila, da inalterável serenidade que sustenta a alegria de viver, é preciso aprimorar nossos sentimentos, aprender a cultivar os valores da compreensão, da misericórdia, do respeito, habilitando-nos a estagiar, intimamente, em ordens cada vez mais elevadas, nos caminhos da perfeição.
        É algo como está numa interessante história relatada por Daniel Goleman, em seu famoso livro "Inteligência Emocional":
        Um guerreiro samurai certa vez desafiou um mestre Zen a explicar o conceito de céu e inferno. Mas o monge respondeu-lhe com desprezo.
       - Não passas de um rústico... Não vou desperdiçar meu tempo com gente da tua laia!
       Atacado na própria honra, o samurai teve um acesso de fúria e, sacando a espada da bainha, berrou:
       - Eu poderia te matar por tua impertinência.
       - Isso - respondeu calmamente o monge - é o inferno.
       Espantado por reconhecer como verdadeiro o que o mestre dizia acerca da cólera que o dominara, o samurai acalmou-se, embainhou a espada e fez uma mesura, agradecendo ao monge a revelação.
       - E isso - disse o monge - é o céu.

 
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Fonte: O Reformador - ano 1998.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

PROVAS VOLUNTÁRIAS. O VERDADEIRO CILÍCIO





       26.  Vós perguntais se é permitido diminuir o rigor das próprias provas. Essa questão faz lembrar estas outras: É permitido àquele que se afoga procurar se salvar? Àquele que se espetou num espinho, retirá-lo? Àquele que está doente, chamar um médico? As provas têm por finalidade exercitar a inteligência tanto quanto a paciência e a resignação; um homem pode nascer numa situação penosa e difícil, exatamente para obrigá-lo a procurar os meios de vencer as dificuldades. O mérito reside em suportar, sem lamentações, as conseqüências dos males que não se podem evitar, em perseverar na luta, em não se desesperar se não for bem-sucedido, mas não com negligência que mais seria preguiça do que virtude.

       Essa questão naturalmente nos leva a uma outra. Uma vez que Jesus disse: "Bem-aventurados os aflitos", há mérito em procurar as aflições agravando suas provas com sofrimentos voluntários? A isso responderei muito claramente: sim, há um grande mérito quando os sofrimentos e as privações têm por objetivo o bem do próximo, pois trata-se da caridade pelo sacrifício; não, quando têm por finalidade apenas o próprio bem, porque é egoísmo por fanatismo.

       Aqui há uma grande distinção a fazer, para vós, pessoalmente: contentai-vos com as provas que Deus vos envia, não aumenteis a sua carga, às vezes já tão pesada; aceitai-as sem lamentações e com fé, é tudo o que ele vos pede. Não debiliteis o vosso corpo com privações inúteis e mortificações sem objetivo, porque tendes necessidade de todas as vossas forças para realizar a vossa missão de trabalho na Terra. Torturar e martirizar voluntariamente vosso corpo é transgredir a lei de Deus, que vos dá os meios de sustentá-lo e fortificá-lo; enfraquece-lo sem necessidade, é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis: essa é a lei; o abuso das melhores coisas acarreta punição por suas conseqüências inevitáveis.

       Bem diferente é o que acontece quando alguém se impõe sofrimentos para o benefício de seu próximo. Se suportais o frio e a fome para aquecer e alimentar aquele que precisa, e se o vosso corpo padece por isso, eis o sacrifício que é abençoado por Deus. Vós que deixais vossos aposentos perfumados para ir a um casebre miserável levar consolação; vós que deixais de dormir para ficar junto a um doente que apenas é vosso irmão diante de Deus; vós, enfim, que usais vossa saúde na prática das boas obras, esse é o vosso sacrifício, verdadeiro cilício abençoado, porquanto as alegrias do mundo não ressecaram o vosso coração; não vos deixastes levar pelos prazeres ilusórios da fortuna, mas vos transformastes em anjos consoladores dos pobres desvalidos.

       Mas vós, que vos retirais do mundo para evitar as suas seduções e viver no isolamento, qual a vossa utilidade na Terra? Já que fugis da luta e abandonastes o combate, onde está a vossa coragem diante das provas? Se desejais um cilício, aplicai-o em vossa alma e não em vosso corpo; mortificai o vosso espírito e não a vossa carne; castigai o vosso orgulho; recebei as humilhações sem vos lastimardes; esmagai vosso amor-próprio; tornai-vos insensíveis contra a dor da injúria e da calúnia, mais pungente que a dor corporal. Eis o verdadeiro cilício cujas feridas vos serão contadas, porque elas serão a prova da vossa coragem e da vossa submissão à vontade de Deus. (Um anjo guardião. Paris, 1863.)


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Fonte: Evangelho Segundo o Espiritismo, V. Bem-Aventurados os Aflitos.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Espírito MIRAMEZ


Fernando Miramez de Olivídeo era filho de casal nobre do norte da Espanha. Sua mãe nascera na França e seu pai era de origem portuguesa. Assim, em suas veias misturava-se o sangue de duas nobrezas, aquecido pelo clima da Espanha, seu berço natal.

Moço inteligente e estudioso, aprofundava-se na história dos povos e naçõs da Terra. Deteve-se com interesse na descoberta das Américas, em cujo evento destacaram-se Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, apaixonando-se aind que sem conhece-las fisicamente, pelas Terras de Santa Cruz. Tal era o seu interesse por elas, que por várias vezes visualizava-se desembarcando em portos da terra que já sentia ser abençoada.

Tinha notícias dos silvícolas, habitantes dessa nação nova, e da escravidão em desenvolvimento, imposta pelos estrangeiros conquistadores, não aceita pelos primeiros, que se revoltavam.

Acompanhou interessadamente a implantação do trabalho escravo do homem de raça negra, levado à força do continente africano, que, por sua característica passiva, acietava o grilhão e o açoite, servindo aos interesses daqueles que avidamente se apossaram das terras.

Colocava-se sempre, em pensamento, no meio do povo humilde, regozijando-se com a bravura dos índios, embora no fundo soubesse que acabariam dominados pelos estrangeiros, que dispunham dos meios para submete-los. Contudo, nesta luta onde os fracos pediam socorro aos homens de bem, os céus jamais ficariam em silêncio, nem deixariam sem resposta os clamores dos oprimidos, apesar dos carmas coletivos dos povos e nações.

Fernando era íntimo de Filipe IV, rei de Espanha, que conhecia seus princípios de integridade e os dotes de elevada moral de que era portador. Para o rei, Fernando tinha algumas deficiências que necessitavam ser corrigidas: era avesso às guerras, repudiava a violência e propugnava pelo direito dos povos e, principalmente, dos indivíduos.

Como tinha planos relativos a ele, durante uma entrevista que lhe concedera, em caráter íntimo, Filipe dá início à execução dos mesmos, falando-lhe convincente: 

"Caro amigo, conheço vossos dotes e vos considero pessoa grata da Família Real, que conta com eles para defender seus interesses, bem como os de nossa Espanha. Reconheço em vós predicados e valores que se aproximam da perfeição, contudo, compete a mim, por quem sois, recomendar-vos que junto com a virtude, deveis cultivar a bravura  e a tenacidade; o orgulho pela nossa nobreza e pela tradição e honra da Espanha; a luta pelas nossas posses de além-mar, aumentando nossas riquezas e o nosso poder. Nossa nação tem a gloriosa destinação de dominar o mundo. Deus está conosco e Cristo a escolheu como seu trono para, através dela, reinar sobre tudo.
Sabemos que Portugal começa a se levantar de novo e a sua ganância por ouro, prata e pedras preciosas é destemida. Entende que ninguém tem direitos sobre as terras que, por acaso, um de seus navegadores descobriu. A Escola de Sagres somente prepara os homens, enviando-os em expedição por todos os quadrantes, abrindo caminhos marítimos em busca de poder e riquezas, esquecendo-se de suas orbrigações para com Deus, Cristo e a Santa Madre Igreja. Por isso, resolvi constituir-vos meu representante" disse o rei entre dois goles de vinho, dando à sua fala um tom misto de intimidade e cumplicidade.

I"Ide, pois, meu filho, para a terra adornada pela cruz formada por cintilantes estrelas. Sereis os ouvidos do Rei e a boca de Espanha. Sereis dotado das instruções do que devereis fazer, bem como das credenciais que vos darão poderes de Chefe de Estado. Depois de tudo consumado, tereis a vossa glória: sereis imortalizado pela história e tereis o reconhecimento de toda a Espanha. Em nome dela, eu vos abençoo."

Sorrindo, Filipe sorveu mais um gole do puro vinho, satisfeito consigo mesmo, pela maneira com que convencera a Fernando.

Miramez, a tudo ouvia pacientemente, atento às intenções ocultas de Filipe, que ele bem identificava. Contrariava-o conviver com interesses da ordem que ele tanto subestimava, mas sua intuição o prevenia da oportunidade de realizar as suas íntimas aspirações e anseios, que eram conhecer e viver nas Terras de Santa Cruz, a fim de participar de sua preparação como Pátria do Evangelho.

Enquanto o rei sorvia o saboroso vinho, seu cérebro funcionava celeremente, esforçando-se para não deixar transparecer suas reais e elevadas intenções.

O íntimo do seu ser era de total alegria, quando respondeu ao monarca:

- "Majestade, em vossas mãos estão as rédeas deste vigoroso corcel que é a Espanha. Que Deus vos abençoe para que conduzais esta nação que tanto amamos nas melhores condições de trabalho e honestidade. Vamos obedecer à vossa real vontade, para alcançarmos a vitória. Conheço vosso ideal em relação à Espanha e rogo a Deus para vos ajudar a formar nobres ideias em benefício do povo."

Ia prosseguir, mas notou que o soberano já estava ficando confuso pelo que ouviu e pela quantidade de vinho ingerido. Por isso, apenas pensou, de si para consigo: "Sei perfeitamente o que Vossa Majestade deseja para si mesma." E, abrandando mais a voz, disse para terminar: "Eu vos agradeço de coração e serei eternamente grato pela oportunidade que ora me ofereceis de conhecer novas terras, as quais já admiro mesmo antes de ve-las. Garanto a Vossa Majestade que vamos fazer lá muitas coisas agradáveis a Deus." E curvando-se respeitosamente ante o soberano que o despedira entusiasticamente, retirou-se.

O rei passaria uma noite mal dormida, rememorando as palavras de Fernando, sem conseguir entender o seu sábio e elevado sentido, sem, contudo, deixar de confiar no nobre súdito. Além disso, tinha, interesse em sua saída da Espanha. Miramez, porém, naquela noite inesquecível em que viu começar a se materializar sua mais íntima aspiração, teve um sono tranquilo, fazendo uma viagem astral, parcialmente consciente, às terras aonde em breve haveria de aportar. Acordara no dia seguinte cantarolando, envolvido por estranha alegria, como só ia acontecer com aqueles que pensam, vivem e agem em prol da humanidade.

Assim, em um dia do ano de 1649, em que reinava em Roma Inocêncio X, ou João Batista Panfil, desembarcava no litoral do Brasil, secretamente, na condição de turista, o enviado do rei da Espanha. Amável e convivente, já no barco que o transportava para a praia, relacionara-se com os remadores e escravos.

Desceu Miramez pela primeira vez em corpo físico, nas terras com as quais sempre sonhara. Como que agindo segundo os ditames do coração, descalçou as botas e pisou a terra, sentindo-a sob seus pés, como se identificando com ela, recebendo-lhe o calor. Ao mesmo tempo, lágrimas que marejavam seus olhos caíam no solo generoso que as recebia, umedecendo-se com elas, ocorrendo desse modo uma permuta de valores, cujo resultados benéficos seriam constatados através dos tempos.

Acontecimento notável em sua chegada, foi o fato de vários índios que se encontravam na praia virem ao seu encontro como que para recepcioná-lo, ao tempo em que o feiticeiro da tribo a ele se dirigia e, apontando para o seu lado direito, exclamava: 'Babagi! Babagi!'

Babagi era uma divindade indígena, tida pelos estranhos como uma lenda, que curava os enfermos através dos curandeiros das tribos. Era, na realidade, uma entidade espiritual e vinha ao lado de Fernando, ajudando-o a andar na areia onde seus pés deslizavam. Este, logo sentiu-se cercado pelos novos amigos, que nele sentiam condições de proporcionar alívio aos sofrimentos e perseguições por que vinham passando, ante o domínio dos invasores estrangeiros.

Apesar de ainda não falar seu idioma, entendia-os pelos gestos e por intuição, o que denotava a afinidade existente. Assim, tendo se misturado com os nativos, ninguém suspeitava de sua condição de súdito espanhol a serviço secreto do rei. Em curto espaço de tempo, Fernando já assimilara os diversos dialetos indígenas e africanos, movimentando-se com desenvoltura entre os humildes. O clima da região influiu em seus traços e poucos conseguiam distingui-lo do povo local.

Em 1653, desceu no Maranhão onde se encontrava Fernando, o temido político e pregador, representante de Roma e de Portugal - Pe. Antonio Vieira - que em seus famosos sermões acionava forças desconhecidas e dominava com facilidade aqueles que o ouviam. Era esse homem que Filipe IV, rei da Espanha, temia retornasse ao Brasil.

Em cumprimento à missão de que estava incumbido, comunicava ao seu soberano os acontecimentos que poderiam ser benéficos ao Brasil, omitindo notícias que poderiam prejudicar os povos que nele já lançavam raízes.

Com o passar do tempo e por impositivo do progresso, tudo foi mudando, e assim acontecia com os concetos e interesses. Isso agradava sobremodo ao nosso personagem, que já tinha nos índios e nos escravos a sua própria família.

Certa noite, quando contemplava as estrelas, sobreveio forte lembrança da pátria distante, onde dispunha de inúmeros e valiosos bens, entre propriedades e terras abundantes. Enquanto meditava se deveria regressar à Espanha, sentiu uma voz suave, como se nascesse dentro de sua consciência, recomendando-lhe: "Vai, vende todos os teus bens, distribui-os entre os pobres e terás um tesouro no céu: depois, vem e segue-me." Surpreso, sentia que aquela voz era sua conecida: mas, de onde? Parecia-lhe que já a escutara antes, mas, quando? Achava-se perdido no oceano dos séculos. contudo, a voz fez-se ouvir novamente. "Fernando," - disse a voz, "podes vender todas as tuas posses na Espanha e distribuir o dinheiro entre os necessitados de tua pátria. Os daqui, necessitando passar pelos processos renovadores, precisam mais da tua riqueza mental, do resultado de tuas mãos operosas, do tesouro armazenado em teu coração e da tua presença confortadora."

Miramez, então, resolveu enviar procuração a amigos de sua confiança, autorizando-os a dispor dos seus bens e distribuir o resultado entre os carentes e sofredores da Península Ibérica.

Não chegou a ficar sabendo o que foi feito de suas riquezas materiais, porém, passou a viver um estado de consciência tranquila, única riqueza que acompanha seus portadores eternidade a fora.

Após aquelas providências, sua vida em muito mudou. Aquele homem culto e fascinante foi descoberto pelos catequizadores entre os índios e os escravos africanos, como pastor de dois rebanhos. Alguns índios e negros não se davam bem, hostilizando-se mutuamente. Trabalhando arduamente pela aproximação e convivências das duas raças, em pouco tempo seus esforços eram coroados de êxito, quando índios e negros festejavam juntos suas tradições, unidos pelos laços da amizade e do sofrimento.

Miramez, então, passou a frequentar o grupo de catequizadores por encontrar ali campo propício à prática dos seus ideais. Como resultado de seu trabalho e esforço conjunto, mais tarde foi promulgada, em 1680, a lei de proteção aos índios.

Antes de terminar este relato, procurando mostrar como ocorreu a chegada de Miramez ao Brasil e a sua pariticpação junto aos espíritos simples e sofredores que prepararam o campo que favoreceria a implantação do Evangelho nas terras do Cruzeiro, queremos relatar um fato ocorrido com ele em um pequeno arraial destinado a receber os velhos escravos, onde passavam os últimos dias de suas vidas. 

Junto com jovens escravos, que vez por outra recebiam permissão de seus senhores para visitarem seus pais e avós, Miramez, certa manhã, buscou os casebres para rever seus tutelados, levando-lhes o conforto de sua palavra fraterna e confortadora. Todos o tinham como o "Pai Branco", "Filho do Sol" ou "Homem Que Veio da Luz". 

Ao levantar a cabeça, fixando o olhar nas nuvens, como costumava fazer, punha o coração ao alto e a mente em sintonia com o Todo Poderoso. O ambiente se asserenava, envolvendo em suaves vibrações aqueles que o cercavam.

Ao regressar, passeando à beira de murmurante regato de águas cristalinas, acompanhado, como de costume, por uma velha preta, ao passar beirando um barranco onde a vegetação se adensava, foi atacado por perigosa e venenosa jararacussu, cuj picada comumente resulta mortal, sendo atingido na perna, abaixo do joelho.

A preta velha viu o réptil dando o bote e a água do riacho tingir-se de sangue. Saiu a correr para o povoado em busca da velha benzedeira Pari, que nos seus noventa anos a muitos salvara pelos seus dons de curar várias enfermidades. Ao ser localizada e informada do ocorrido, a velha Pari, já acostumada a essas emergências, apanhou alguns apetrechos e saiu pressurosa em socorro ao Pai Branco.

Mas Miramez, já com muitas experiências vividas entre índios e negros, também tomara seus cuidados:  lembrando-se de um cordão com vários nós intercalados que carregava em seu bornal, tomou-o e com ele amarrou a perna ofendida, na altura do joelho, impedindo a circulação. Tal cordão ele recebera de sua mãe querida, nos minutos finais de sua vida na terra, explicando-lhe sua origem. Pertencera a um bondoso pároco português que se dedicava à cura. "Meu filho", disse ela nos seus últimos momentos. "quando o velho padre me passou este cordão, de seus dedos desprendiam-se pequenos raios de luz que eram absorvidos pelos nós do cordão. Carreguei-o comigo por vários anos e muitas vezes utilizei-o em favor do alívio das pessoas. Agora, passo-o a você, pra que seja usado em seus momentos de dificuldade e de aflições." Abençoando-o, desfalecera e regressara à pátria espiritual.

A negra Pari, chegando, fez com que Miramez se assentasse num lajedo, levantasse os olhos e, como se conversasse com alguém invisível, pronunciava palavras ininteligíveis. Em dado momento, colocou os lábios sobre o ferimento e sugou por várias vezes o sangue já enegrecido, cuspindo-o para o lado. A seguir, colocou algumas ervas na boca, mastigou-as e tornou a cuspir, lavando-a nas águas do riacho. Torna a repetir a operação, colocando as ervas maceradas sobre o ferimento, que logo parou de doer.

Com um suspiro profundo e se recompondo, a boa escrava retirou o cordão benfazejo da perna de Miramez, ajudou-o a caminhar em demanda a seu casebre, onde o fez ingerir uma beberagem. Antes disso, a velha Pari, acalmando a revolta dos velhos escravos, não deixou que matassem a cobra; foi sozinha ao local, gritou com o perigoso réptil, expulsou-o e ordenou que não voltasse mais ali. Miramez sentia cada vez mais gratidão e amor por aquela gente simples, filha de Deus, que, dentro do possível, tudo fazia em seu benefício.

E naquela noite chorou de reconhecimento, orando ao Criador em benefício daquela gente simples e sofredora.


PERFIL DE MIRAMEZ 

O nosso diretor espiritual era, quando encarnado, alto, de porte esbelto e nobre, cabelos encaracolados da cor do ouro velho, os quais  trazia amarrados para trás. Tinha testa ampla, denotando inteligência, tez bronzeada pelo tórrido sol do norte, olhos verdes que lembravam os canaviais; os dois incisivos da frente eram ligeiramente separados.
Seus lábios eram pouco salientes e o nariz, grande e levemente achatado na ponta, não chegava a tirar-lhe a formosura do rosto.
Apesar do constante sorriso nos lábios, seu semblante era rave; algumas rugas já demonstravam as consequências do desconforto físico e dos trabalhos em favor dos humildes.
Sua morte ocorreu num quadro de elevada suavidade. Os negros e os índios catequizados formavam extensa fila para beijar-lhe as mãos, que tanto os ajudaram a viver. Enquanto esteve lúcido, Miramez abençoava-os, um por um.
Nos momentos derradeiros, Fernando Miramez de Olivídeo percebeu a presença da mãe extremosa, bem como de sublimada entidade que ele prefere não identificar, por julgar não merecer tamanha honra.
Com lágrimas nos olhos, Miramez desprendeu-se do vaso físico e, já fora dele, chorou de felicidade e agradecimento, por ter ingressado no Brasil pelas portas do amor e da caridade, que lhe foram abertas por Jesus.



pelo Espírito Miramez, psicografia de João Nunes Maia
Obra: Horizontes da Mente